sexta-feira, 5 de junho de 2009

um café e uma nata

n3 > publicado no Diário de Aveiro no dia 27 de abril de 2006

Já o sol atravessa um homem invisível com severas lâminas de luz. Já o homem colige, num carrinho de mão, embalagens de cartão deixadas a monte nas traseiras dos supermercados. Já dormiu, já sonhou com o corpo duma mulher com quem foi ao cinema na noite anterior, já acordou. Já tem fome.

Um café e uma nata. Com excepção dos clientes, Sandra nunca tocou ninguém na intimidade, e estabelece mentalmente um paralelismo entre a sua vida e o pequeno-almoço. Entre o doce e o acre, entre a infância e o presente. Acabou agora de ler o jornal ao balcão duma pastelaria na entrada dum centro comercial decrépito, e ficou a saber que um grupo de adolescentes espancou e assaltou um professor numa das mais movimentadas avenidas da cidade. Sabe também que o preço da gasolina vai tornar a subir, que um jovem actor duma série qualquer da televisão morreu num acidente de automóvel, que uma florista foi violada dentro da própria loja por alguém que comprava flores para um funeral.

Um café e uma nata. Sandra vive num dos bairros decadentes dos subúrbios da cidade, e hoje percorreu as ruas daquele cemitério com a sensação que a espreitavam por trás das cortinas sujas de cada janela. As burkas da cidade, pensa. Por isso ainda analisa discretamente o seu ténue reflexo no balcão da pastelaria, a ver se está tudo bem. Não sabe, nem nunca soube, o que é estar tudo bem, mas sabe certamente ver se está tudo bem. Ri para dentro engolindo o pensamento e alguma amargura. Um café e uma nata.

Lá fora um homem escreveu nos restos mortais duma caixa de cartão, com o escasso negrume duma esferográfica em fim de vida, que plastifica documentos. Mas não, não plastifica. Está feito estátua e foi a manhã que o plastificou a ele, esculpindo-lhe ausência na face. A quietude dos seus olhos adormeceu no homem que amontoa cartão velho, que ele já não plastifica nada há vários dias e tem de arranjar maneira de viver. Talvez também ele devesse colher cartão para vender, pensa. Para comer, conclui.

Um café e uma nata. Sandra sabe que talvez seja hoje e deseja-o. Ontem foi ao cinema com o homem invisível e ele adormeceu encostado ao seu ombro. Ela petrificou o corpo e o coração para não o acordar, levantando apenas, de vez em quando, o braço do lado oposto para ajustar os óculos ao nariz e conseguir ler as legendas. Acha que foi a noite mais feliz da sua vida de adulta. Não se lembra muito bem do filme, mas lembra-se que o homem cheirava bem, e que no fim da sessão lhe agradeceu o abraço com um obrigado e um beijo na testa. Só na testa, infelizmente. Depois foram a um café que ainda tinha a porta entreaberta àquela hora e ela bebeu um café e comeu uma nata. Sentia-se doce e acre, criança e adulta. Ele bebeu uma água tónica. No fim não fizeram amor, não deram as mãos nem trocaram sorrisos comprometedores. No entanto, o homem invisível levou-a a casa e esperou, lá em baixo, que ela subisse e lhe viesse dizer adeus à janela. Acabou por seguir devagarinho pelo passeio até ser engolido pela noite. Um café, uma nata, um número de telefone num bilhete de cinema e um lençol frio, foi tudo o que restou depois. Sandra sabe que ele a abordou na rua para ter sexo. Só. Que, segundo ele mesmo, perdeu a coragem quando iam a entrar para uma pensão no bairro velho da cidade, e que foi ele quem propôs a ida ao cinema. Que lhe pagava na mesma, insistiu, e foram. A um filme qualquer, numa sala qualquer, num shopping qualquer. No fim Sandra não aceitou o pagamento, trocando o dinheiro pela promessa duma nova visita que ficou marcada já para hoje.

O homem que plastifica documentos tem um rádio rouco. Entra com ele ligado no café e apoia-se no balcão. É só ruído, mas esse ruído parece ser a sua melhor companhia e por isso ninguém se incomoda. O ruído parece ser indissociável do homem, e todos os clientes plastificam uma pose de quem está acima daquela relação. Ele pergunta quanto custa um croissant, apontando-o. Noventa, responde-lhe a voz impaciente da empregada, e insiste que ele indaga o preço todos os dias e nunca consome. Ele torna a sair e a sentar-se na mesa do passeio. Não leva o croissant mas leva o olhar de Sandra que ainda esvoaça pelo resto dos clientes como uma borboleta excitada. Ninguém reage. Apenas uma cliente, que ancorou o olhar nas flores de plástico da parede, repete para dentro que elas são de plástico: são de plástico, são de plástico, são de plástico. Sandra reconhece-a da notícia do jornal: é a florista. Depois volta ao homem. Compra e leva-lhe lá fora um croissant e um leite com chocolate de pacote. Ele agradece quebrando a sua face empedernida com um sorriso dócil. Que talvez ela queira plastificar qualquer coisa, diz-lhe. Talvez, responde Sandra, e tira um cartão antigo com a fotografia a preto e branco duma menina sardenta e sorridente. A menina é ela e ele sabe-o. Só não compreende essa assunção. Que vai mostrar o cartão a uma pessoa especial hoje à noite, confessa. Faz-se silêncio e o silêncio cresce durante a plastificação.

O Sol já subiu um pouco e está menos agressivo. Sandra reentra para pagar e acredita que logo à noite vai ser melhor que ontem. Também o homem que plastifica documentos detecta felicidade no homem invisível, que passa agora assobiando uma música qualquer, e acredita que pode fazer o mesmo. Lá dentro a mulher ainda repete baixinho que as flores são de plástico: são de plástico, são de plástico, são de plástico.

7 comentários:

Sónia disse...

Epa, eu não sabia deste. Que maravilha! Agora não tenho tempo mas vai já para os favoritos.Já tenho como passar os serões, eheh.

Bem hajas!

Ivar C disse...

crystal, obrigado. na verdade acho que só tu é que cá vens... lol. :)

Miss Kin disse...

Deixou-me o coração pequenino. Cada um com as suas tristezas...

Sónia disse...

chego? A mim bastam-me tu e os pasteis de nata rs

Sun Melody disse...

Escreves maravilhosamente bem, encanto-me neste mar de letras salpicadas.

Espero um dia ser capaz de atingir esta dimensão, de olhos entreabertos com um bloco à mão a lapidar tudo que me interioriza, encostada no tronco de uma árvore ao som das cigarras.

Beijo
Sun Melody

Olga disse...

Há mais quem passe por cá. :)

Ivar C disse...

miss kin, :)

crystal, :)

sun melody, obrigado. :)

olga, pois há... :)