quinta-feira, 28 de maio de 2009

por trás dos panos

n1 > publicado no Diário de Aveiro no dia 13 de abril de 2006

Sandra acordou hoje com a sensação que tem trocado a vida por algo infinitamente menor. Acha que foi ontem que reparou nisso, ao chegar a casa, quando a vizinha do lado a tentou esmurrar com um misto de pena e de raiva. Que ela é que anda bem de vida, que não faz contas ao dinheiro nem aos casamentos que desmancha, que é uma galdéria e uma desavergonhada. Sandra colocou a chave na fechadura apenas à terceira tentativa, mesmo mantendo uma calma aparente, e depois entrou fechando a porta sem sequer responder às injúrias. A voz da vizinha, que não falava para ela mas sim para todas as outras vizinhas daquela rua de casas térreas, diminuiu de intensidade mas não se apagou. Ficou a roçar as madeiras velhas da porta como um cão sedento de um lar, e Sandra não saiu mais durante todo o dia. Ficou a ver um concurso qualquer na televisão até adormecer no sofá vencida pelo cansaço, e agora, já o fim de tarde respira sôfrego, acordou com a sensação que tem trocado a vida por algo infinitamente menor.

A cidade que sopra pinta-se como uma velha meretriz, pensa um homem invisível, mas não disfarça as rugas que penteiam o seu corpo de mulher, conclui sorrindo para dentro. Só lhe sobra uma réstia de orgulho, à urbe, e o homem caminha só desafiando-a por entre um nevoeiro que sussurra a um fim de tarde estéril. Os seus olhos investigam todos os bares da baixa, que vão abrindo lentamente com uma luz áspera até pousarem numa nova sentença: talvez a cidade seja assim, tímida, porque passa os dias a ver-se ao espelho. Depois acende um cigarro absorto e entra num botequim que parece não ter nome. Tem apenas idade. Muita. Senta-se ao balcão depois de pendurar a gabardina num cabide que ameaça cair da parede, a peça de roupa encobre a única abertura por onde as cortinas vermelhas do bar deixam entrar uma réstia de luz. Não está ninguém a atender. Espera.

Os vidros da janela da casa de Sandra empalidecem as cores da rua mais do que nos outros dias. É a hora de forçar um sorriso em frente ao espelho e plastificá-lo na face. É um sorriso falso mas forte, uma imensa represa de lágrimas. Uma mulher não chora, repete três vezes. Alisa as calças apertadas na zona das ancas, ajeita os seios aprisionados num sutiã vermelho enquadrando-os com o decote. Sai de casa. O cão de ontem adormeceu mas algumas mulheres de xaile espreitam-na por trás das cortinas de renda. As cortinas de renda são as burkas desta cidade, pensa Sandra, e por um momento sorri sem esforço. Apressa o passo. Uma mulher não chora, uma mulher não chora, uma mulher não chora.

Debaixo duma arcada alguns homens engraxam sapatos a outros homens, e a ausência passeia-se entre os transeuntes como um cão rejeitado pela matilha. Sandra só hoje percebe que eles existem mesmo, que não são uma invenção dela quando passa ali de madrugada ao regressar a casa. É fim de tarde e eles estão ali na mesma. Um deles tem a tenda decorada com a bandeira amarela e negra duma equipa de futebol qualquer, e discute arduamente qualquer coisa com o cliente que se distrai com o corpo de Sandra. Parece que ele rompeu a gabardina no prego que serve de cabide. Ela sente o olhar dele a esvoaçar à volta do seu corpo como uma borboleta ferida e apressa o passo. Os saltos altos pianam sobre as pedras do passeio tocando ritmadas notas musicais. Sandra nunca foi a um jogo de futebol, pensa, e depois continua pululando a mente por todos os sítios na cidade que nunca visitou. Talvez também ela seja um animal rejeitado. Talvez não. Era tão bom que um jogo de futebol chegasse para a fazer feliz. Talvez não.

Uma mulher de trás do balcão sacode o braço do homem invisível três vezes até ele acordar. O cigarro ardeu sem ser fumado, e a sua cinza forma uma espécie de galho torto que cai sobre as calças. Ela pergunta-lhe o que é que ele quer, que se ele quer dormir não é ali o sítio indicado. Então um uísque novo, responde ele. Depois fixa os olhos num televisor que também acabou de acordar, e revela as córneas avermelhadas em finos traços de sangue. Sandra, que acaba de entrar no bar, acha que são olhos de álcool, aqueles, e senta-se também ao balcão mantendo estrategicamente dois bancos de distância do homem. A mulher que sacode braços surge de trás dum cortinado vermelho e pergunta-lhe o que é que ela quer, que se é para andar ao engate não é ali o sítio indicado. Então um uísque novo, responde Sandra. Depois fixa os olhos no televisor que transmite um jogo de futebol. Um equipa veste de amarelo e negro, a outra não. Talvez seja a mesma do engraxador de sapatos, conclui ela, e dá um gole no uísque onde aproveita para afogar o pensamento por uns instantes. Lá fora um homem vê o jogo numa montra duma loja de electrodomésticos, e os seus gritos ocupam esporádica e violentamente a rua.

A cidade que sopra descansa agora, numa espécie de apneia duma caixa torácica enfraquecida, e espera pacientemente a noite que parece não querer cair. Há, no entanto, um golo qualquer que interrompe esta acalmia. Outro uísque, pede o homem invisível, ou melhor, dois, que um é para a senhora. Sandra endireita-se no banco e olha o homem que acaba de impedir que o seu pensamento se afogue. Tem uma boca, tem um nariz, tem dois olhos, como todos os outros que começam por lhe pagar um copo de uísque, ou uma cerveja, ou uma cola, ou outra coisa qualquer. É invisível, portanto, mas fala e pergunta-lhe se ela tem que fazer depois do jogo. Que depende, diz ela, que é oportuno falar de dinheiro. A mulher que sacode braços esconde-se atrás da burka vermelha do bar, ele desloca-se estrategicamente dois bancos e fica ao lado dela. Põe-lhe uma mão numa anca. O cabide cai e a gabardina estende-se no chão deixando perceber que, lá fora, o homem que vê o jogo num televisor da montra ainda festeja o golo e é o engraxador. Está sentado na sua caixa de trabalho. Faz muito barulho e o homem invisível ri-se. Sandra também. Talvez não. A gabardina está rota. Daqui a pouco ambos entrarão na casa dela, ladeando os olhares sedentos por trás dos cortinados, das burkas, dos panos, do que lhe quiserem chamar. Mais um homem invisível numa noite infinitamente pequena de Sandra. Por trás dos panos.