segunda-feira, 22 de junho de 2009

glóbulo branco

n4 > publicado no Diário de Aveiro no dia 4 de maio de 2006

Devagar, Sandra lava os dentes à sua imagem reflectida no espelho, sustendo uma anormal quietude no olhar com reforçada e instintiva incidência nos da frente. Estão podres, os dentes da frente, e continua com uma cautelosa inspecção a qualquer migalha que possa ter escapado à operação, tacteando com a língua todos os orifícios que sente existentes. Um hálito pútrido solta-se devagar, uma tristeza cresce devagar, um sorriso frágil desenha-se devagar, com os dois lábios contrariando a sua separação natural com a força dum íman. É assim que Sandra sai de casa e que repara que deixou a chave lá dentro, mas como se estivesse a sair duma cela onde habitara prisioneira durante uma vida, nem se importa. Sente a alma tão podre quanto os dentes.

Devagar, do outro lado da cidade que sopra, num quarto alugado a partir duma cabine telefónica alguns dias antes, e ainda com algumas malas velhas por abrir, um homem invisível faz a barba que lhe rareia a face como erva daninha, e que parece há anos não ver ninguém, não sentir ninguém, não ser beijada por ninguém. Corta-se no lábio superior com a ferrugem da lâmina e abre uma ferida que não quer coagular. Por isso estanca-a com um pedaço de papel higiénico. Depois sai, pára em frente ao elevador durante uns segundos como se arrumasse ideias prostradas ao acaso nas suas memórias, revista os bolsos com ambas as mãos e volta a entrar para pegar no telemóvel. Ao descer os quatro andares com o objecto sacudindo um bolso da frente das calças, e porque tem fome, decide parar no primeiro café que encontrar. Tem dois dias para arranjar emprego. Estabelece mentalmente a meta.

Lá fora coagulam as artérias da cidade com o trânsito da manhã, onde ainda deambula lento o cadáver da última noite sangrando. Sangra em latas vazias de cerveja que adormeceram na beira do passeio, num sem-abrigo que ainda dorme numa ponte que tange um centro comercial, em crianças autómato que vendem pensos nos semáforos vermelhos, em homens que distribuem papéis publicitando miraculosas ciências ocultas. O homem invisível gostava de estancar esta ferida como fez na sua face, pensa, mas é apenas um enfraquecido glóbulo branco. Tem fome. Tem dois dias para arranjar emprego.

Sandra acha-se disforme, e acabou de adoçar o café do pequeno-almoço com dois pacotes de açúcar, como se pudesse adoçar assim o impossível. Sobre a mesa tem um guardanapo aberto com os restos mortais de algumas bolachas proteicas que trouxe de casa. Ontem recusaram-lhe ali emprego. Um homem visível, limpando os ouvidos com a unha comprida do dedo mindinho esquerdo, disse-lhe que não quer ali joaninhas da noite a trabalhar. Depois riu-se, procurou compreensão no resto do pessoal e não encontrou. Calou-se. Joaninha da noite nem é muito feio, pensa agora Sandra que está na única mesa ocupada apenas por uma pessoa, e vê, por isso, o mesmo homem levantar a chávena ainda com um resto de café. Diz-lhe que não pode comer ali produtos que não são da casa, que pague e que saia. Não pede por favor. O homem invisível entra e pergunta-lhe tugindo se se pode sentar. Que sim, responde Sandra acenando afirmativamente com a cabeça, de olhos divagando por todo o espaço menos por ele. O empregado reaproxima-se e avisa-o que no canto uma mesa está quase livre. Sandra tapa o sorriso amargo da boca com a palma da mão, e torna a ondular o olhar por sítios nunca dantes navegados. Ele insiste que fica ali, se a senhora não se importar. Sandra não se importa. Nem sem lembra do que é importar-se com alguma coisa.

O homem invisível toma o pequeno-almoço em silêncio. Sandra não se sente bem nessa ausência de ruído mas não se levanta, que sente não ter melhor lugar para ir. É náufraga num rochedo envolto em mar revolto. Ele sorri com as bochechas cheias do último pedaço de torrada e levanta-se. Vai lá fora e volta com um papel que estava preso na montra, passando por ela em direcção ao balcão e pedindo-lhe por gestos que não se vá já embora. Depois regressa e senta-se de novo. Era o papel que pedia um empregado e ele diz-lhe que a partir de amanhã começa a trabalhar ali, que gostava de lhe oferecer o seu primeiro pequeno-almoço, que espera por ela de manhã. Sorri. Sandra sorri também, desta vez sem tapar a boca. Pousa a cabeça na palma da mão que, como o cume duma torre ao vento, vacila sobre o braço débil e trémulo. Pousa os olhos tristes no chão, siando-os com a brandura duma ave de rapina, e ausenta-se levando o pensamento para o minuto que acaba de passar. Talvez volte a casa e tente de alguma forma recuperar a chave. Há-de safar-se. Tem os dentes podres mas a alma não.

6 comentários:

Olga disse...

Às vezes basta um pequeno gesto para recuperar a esperança.

Padme Amidala disse...

Às vezes esquecemo-nos de que existem pessoas com problemas maiores do que os nossos, mais infelizes, a quem a vida pregou mais partidas.

Obrigada por me lembrares disso hoje, estava mesmo a precisar...

Tens uma escrita magnífica...

Parabéns.

Ivar C disse...

olga, :)

padme amidala, obrigado. :)

Anónimo disse...

Céus!

Comé que eu não vi este blog ANTES!!!

:-O

Sónia disse...

:D

Demóstenes disse...

Acabo de descobrir o teu canto...

Gostei do que li.

Devias escrever mais amiúde.