quarta-feira, 10 de julho de 2013
segunda-feira, 22 de junho de 2009
glóbulo branco
n4 > publicado no Diário de Aveiro no dia 4 de maio de 2006
Devagar, Sandra lava os dentes à sua imagem reflectida no espelho, sustendo uma anormal quietude no olhar com reforçada e instintiva incidência nos da frente. Estão podres, os dentes da frente, e continua com uma cautelosa inspecção a qualquer migalha que possa ter escapado à operação, tacteando com a língua todos os orifícios que sente existentes. Um hálito pútrido solta-se devagar, uma tristeza cresce devagar, um sorriso frágil desenha-se devagar, com os dois lábios contrariando a sua separação natural com a força dum íman. É assim que Sandra sai de casa e que repara que deixou a chave lá dentro, mas como se estivesse a sair duma cela onde habitara prisioneira durante uma vida, nem se importa. Sente a alma tão podre quanto os dentes.
Devagar, do outro lado da cidade que sopra, num quarto alugado a partir duma cabine telefónica alguns dias antes, e ainda com algumas malas velhas por abrir, um homem invisível faz a barba que lhe rareia a face como erva daninha, e que parece há anos não ver ninguém, não sentir ninguém, não ser beijada por ninguém. Corta-se no lábio superior com a ferrugem da lâmina e abre uma ferida que não quer coagular. Por isso estanca-a com um pedaço de papel higiénico. Depois sai, pára em frente ao elevador durante uns segundos como se arrumasse ideias prostradas ao acaso nas suas memórias, revista os bolsos com ambas as mãos e volta a entrar para pegar no telemóvel. Ao descer os quatro andares com o objecto sacudindo um bolso da frente das calças, e porque tem fome, decide parar no primeiro café que encontrar. Tem dois dias para arranjar emprego. Estabelece mentalmente a meta.
Lá fora coagulam as artérias da cidade com o trânsito da manhã, onde ainda deambula lento o cadáver da última noite sangrando. Sangra em latas vazias de cerveja que adormeceram na beira do passeio, num sem-abrigo que ainda dorme numa ponte que tange um centro comercial, em crianças autómato que vendem pensos nos semáforos vermelhos, em homens que distribuem papéis publicitando miraculosas ciências ocultas. O homem invisível gostava de estancar esta ferida como fez na sua face, pensa, mas é apenas um enfraquecido glóbulo branco. Tem fome. Tem dois dias para arranjar emprego.
Sandra acha-se disforme, e acabou de adoçar o café do pequeno-almoço com dois pacotes de açúcar, como se pudesse adoçar assim o impossível. Sobre a mesa tem um guardanapo aberto com os restos mortais de algumas bolachas proteicas que trouxe de casa. Ontem recusaram-lhe ali emprego. Um homem visível, limpando os ouvidos com a unha comprida do dedo mindinho esquerdo, disse-lhe que não quer ali joaninhas da noite a trabalhar. Depois riu-se, procurou compreensão no resto do pessoal e não encontrou. Calou-se. Joaninha da noite nem é muito feio, pensa agora Sandra que está na única mesa ocupada apenas por uma pessoa, e vê, por isso, o mesmo homem levantar a chávena ainda com um resto de café. Diz-lhe que não pode comer ali produtos que não são da casa, que pague e que saia. Não pede por favor. O homem invisível entra e pergunta-lhe tugindo se se pode sentar. Que sim, responde Sandra acenando afirmativamente com a cabeça, de olhos divagando por todo o espaço menos por ele. O empregado reaproxima-se e avisa-o que no canto uma mesa está quase livre. Sandra tapa o sorriso amargo da boca com a palma da mão, e torna a ondular o olhar por sítios nunca dantes navegados. Ele insiste que fica ali, se a senhora não se importar. Sandra não se importa. Nem sem lembra do que é importar-se com alguma coisa.
O homem invisível toma o pequeno-almoço em silêncio. Sandra não se sente bem nessa ausência de ruído mas não se levanta, que sente não ter melhor lugar para ir. É náufraga num rochedo envolto em mar revolto. Ele sorri com as bochechas cheias do último pedaço de torrada e levanta-se. Vai lá fora e volta com um papel que estava preso na montra, passando por ela em direcção ao balcão e pedindo-lhe por gestos que não se vá já embora. Depois regressa e senta-se de novo. Era o papel que pedia um empregado e ele diz-lhe que a partir de amanhã começa a trabalhar ali, que gostava de lhe oferecer o seu primeiro pequeno-almoço, que espera por ela de manhã. Sorri. Sandra sorri também, desta vez sem tapar a boca. Pousa a cabeça na palma da mão que, como o cume duma torre ao vento, vacila sobre o braço débil e trémulo. Pousa os olhos tristes no chão, siando-os com a brandura duma ave de rapina, e ausenta-se levando o pensamento para o minuto que acaba de passar. Talvez volte a casa e tente de alguma forma recuperar a chave. Há-de safar-se. Tem os dentes podres mas a alma não.
Devagar, Sandra lava os dentes à sua imagem reflectida no espelho, sustendo uma anormal quietude no olhar com reforçada e instintiva incidência nos da frente. Estão podres, os dentes da frente, e continua com uma cautelosa inspecção a qualquer migalha que possa ter escapado à operação, tacteando com a língua todos os orifícios que sente existentes. Um hálito pútrido solta-se devagar, uma tristeza cresce devagar, um sorriso frágil desenha-se devagar, com os dois lábios contrariando a sua separação natural com a força dum íman. É assim que Sandra sai de casa e que repara que deixou a chave lá dentro, mas como se estivesse a sair duma cela onde habitara prisioneira durante uma vida, nem se importa. Sente a alma tão podre quanto os dentes.
Devagar, do outro lado da cidade que sopra, num quarto alugado a partir duma cabine telefónica alguns dias antes, e ainda com algumas malas velhas por abrir, um homem invisível faz a barba que lhe rareia a face como erva daninha, e que parece há anos não ver ninguém, não sentir ninguém, não ser beijada por ninguém. Corta-se no lábio superior com a ferrugem da lâmina e abre uma ferida que não quer coagular. Por isso estanca-a com um pedaço de papel higiénico. Depois sai, pára em frente ao elevador durante uns segundos como se arrumasse ideias prostradas ao acaso nas suas memórias, revista os bolsos com ambas as mãos e volta a entrar para pegar no telemóvel. Ao descer os quatro andares com o objecto sacudindo um bolso da frente das calças, e porque tem fome, decide parar no primeiro café que encontrar. Tem dois dias para arranjar emprego. Estabelece mentalmente a meta.
Lá fora coagulam as artérias da cidade com o trânsito da manhã, onde ainda deambula lento o cadáver da última noite sangrando. Sangra em latas vazias de cerveja que adormeceram na beira do passeio, num sem-abrigo que ainda dorme numa ponte que tange um centro comercial, em crianças autómato que vendem pensos nos semáforos vermelhos, em homens que distribuem papéis publicitando miraculosas ciências ocultas. O homem invisível gostava de estancar esta ferida como fez na sua face, pensa, mas é apenas um enfraquecido glóbulo branco. Tem fome. Tem dois dias para arranjar emprego.
Sandra acha-se disforme, e acabou de adoçar o café do pequeno-almoço com dois pacotes de açúcar, como se pudesse adoçar assim o impossível. Sobre a mesa tem um guardanapo aberto com os restos mortais de algumas bolachas proteicas que trouxe de casa. Ontem recusaram-lhe ali emprego. Um homem visível, limpando os ouvidos com a unha comprida do dedo mindinho esquerdo, disse-lhe que não quer ali joaninhas da noite a trabalhar. Depois riu-se, procurou compreensão no resto do pessoal e não encontrou. Calou-se. Joaninha da noite nem é muito feio, pensa agora Sandra que está na única mesa ocupada apenas por uma pessoa, e vê, por isso, o mesmo homem levantar a chávena ainda com um resto de café. Diz-lhe que não pode comer ali produtos que não são da casa, que pague e que saia. Não pede por favor. O homem invisível entra e pergunta-lhe tugindo se se pode sentar. Que sim, responde Sandra acenando afirmativamente com a cabeça, de olhos divagando por todo o espaço menos por ele. O empregado reaproxima-se e avisa-o que no canto uma mesa está quase livre. Sandra tapa o sorriso amargo da boca com a palma da mão, e torna a ondular o olhar por sítios nunca dantes navegados. Ele insiste que fica ali, se a senhora não se importar. Sandra não se importa. Nem sem lembra do que é importar-se com alguma coisa.
O homem invisível toma o pequeno-almoço em silêncio. Sandra não se sente bem nessa ausência de ruído mas não se levanta, que sente não ter melhor lugar para ir. É náufraga num rochedo envolto em mar revolto. Ele sorri com as bochechas cheias do último pedaço de torrada e levanta-se. Vai lá fora e volta com um papel que estava preso na montra, passando por ela em direcção ao balcão e pedindo-lhe por gestos que não se vá já embora. Depois regressa e senta-se de novo. Era o papel que pedia um empregado e ele diz-lhe que a partir de amanhã começa a trabalhar ali, que gostava de lhe oferecer o seu primeiro pequeno-almoço, que espera por ela de manhã. Sorri. Sandra sorri também, desta vez sem tapar a boca. Pousa a cabeça na palma da mão que, como o cume duma torre ao vento, vacila sobre o braço débil e trémulo. Pousa os olhos tristes no chão, siando-os com a brandura duma ave de rapina, e ausenta-se levando o pensamento para o minuto que acaba de passar. Talvez volte a casa e tente de alguma forma recuperar a chave. Há-de safar-se. Tem os dentes podres mas a alma não.
sexta-feira, 5 de junho de 2009
um café e uma nata
n3 > publicado no Diário de Aveiro no dia 27 de abril de 2006
Já o sol atravessa um homem invisível com severas lâminas de luz. Já o homem colige, num carrinho de mão, embalagens de cartão deixadas a monte nas traseiras dos supermercados. Já dormiu, já sonhou com o corpo duma mulher com quem foi ao cinema na noite anterior, já acordou. Já tem fome.
Um café e uma nata. Com excepção dos clientes, Sandra nunca tocou ninguém na intimidade, e estabelece mentalmente um paralelismo entre a sua vida e o pequeno-almoço. Entre o doce e o acre, entre a infância e o presente. Acabou agora de ler o jornal ao balcão duma pastelaria na entrada dum centro comercial decrépito, e ficou a saber que um grupo de adolescentes espancou e assaltou um professor numa das mais movimentadas avenidas da cidade. Sabe também que o preço da gasolina vai tornar a subir, que um jovem actor duma série qualquer da televisão morreu num acidente de automóvel, que uma florista foi violada dentro da própria loja por alguém que comprava flores para um funeral.
Um café e uma nata. Sandra vive num dos bairros decadentes dos subúrbios da cidade, e hoje percorreu as ruas daquele cemitério com a sensação que a espreitavam por trás das cortinas sujas de cada janela. As burkas da cidade, pensa. Por isso ainda analisa discretamente o seu ténue reflexo no balcão da pastelaria, a ver se está tudo bem. Não sabe, nem nunca soube, o que é estar tudo bem, mas sabe certamente ver se está tudo bem. Ri para dentro engolindo o pensamento e alguma amargura. Um café e uma nata.
Lá fora um homem escreveu nos restos mortais duma caixa de cartão, com o escasso negrume duma esferográfica em fim de vida, que plastifica documentos. Mas não, não plastifica. Está feito estátua e foi a manhã que o plastificou a ele, esculpindo-lhe ausência na face. A quietude dos seus olhos adormeceu no homem que amontoa cartão velho, que ele já não plastifica nada há vários dias e tem de arranjar maneira de viver. Talvez também ele devesse colher cartão para vender, pensa. Para comer, conclui.
Um café e uma nata. Sandra sabe que talvez seja hoje e deseja-o. Ontem foi ao cinema com o homem invisível e ele adormeceu encostado ao seu ombro. Ela petrificou o corpo e o coração para não o acordar, levantando apenas, de vez em quando, o braço do lado oposto para ajustar os óculos ao nariz e conseguir ler as legendas. Acha que foi a noite mais feliz da sua vida de adulta. Não se lembra muito bem do filme, mas lembra-se que o homem cheirava bem, e que no fim da sessão lhe agradeceu o abraço com um obrigado e um beijo na testa. Só na testa, infelizmente. Depois foram a um café que ainda tinha a porta entreaberta àquela hora e ela bebeu um café e comeu uma nata. Sentia-se doce e acre, criança e adulta. Ele bebeu uma água tónica. No fim não fizeram amor, não deram as mãos nem trocaram sorrisos comprometedores. No entanto, o homem invisível levou-a a casa e esperou, lá em baixo, que ela subisse e lhe viesse dizer adeus à janela. Acabou por seguir devagarinho pelo passeio até ser engolido pela noite. Um café, uma nata, um número de telefone num bilhete de cinema e um lençol frio, foi tudo o que restou depois. Sandra sabe que ele a abordou na rua para ter sexo. Só. Que, segundo ele mesmo, perdeu a coragem quando iam a entrar para uma pensão no bairro velho da cidade, e que foi ele quem propôs a ida ao cinema. Que lhe pagava na mesma, insistiu, e foram. A um filme qualquer, numa sala qualquer, num shopping qualquer. No fim Sandra não aceitou o pagamento, trocando o dinheiro pela promessa duma nova visita que ficou marcada já para hoje.
O homem que plastifica documentos tem um rádio rouco. Entra com ele ligado no café e apoia-se no balcão. É só ruído, mas esse ruído parece ser a sua melhor companhia e por isso ninguém se incomoda. O ruído parece ser indissociável do homem, e todos os clientes plastificam uma pose de quem está acima daquela relação. Ele pergunta quanto custa um croissant, apontando-o. Noventa, responde-lhe a voz impaciente da empregada, e insiste que ele indaga o preço todos os dias e nunca consome. Ele torna a sair e a sentar-se na mesa do passeio. Não leva o croissant mas leva o olhar de Sandra que ainda esvoaça pelo resto dos clientes como uma borboleta excitada. Ninguém reage. Apenas uma cliente, que ancorou o olhar nas flores de plástico da parede, repete para dentro que elas são de plástico: são de plástico, são de plástico, são de plástico. Sandra reconhece-a da notícia do jornal: é a florista. Depois volta ao homem. Compra e leva-lhe lá fora um croissant e um leite com chocolate de pacote. Ele agradece quebrando a sua face empedernida com um sorriso dócil. Que talvez ela queira plastificar qualquer coisa, diz-lhe. Talvez, responde Sandra, e tira um cartão antigo com a fotografia a preto e branco duma menina sardenta e sorridente. A menina é ela e ele sabe-o. Só não compreende essa assunção. Que vai mostrar o cartão a uma pessoa especial hoje à noite, confessa. Faz-se silêncio e o silêncio cresce durante a plastificação.
O Sol já subiu um pouco e está menos agressivo. Sandra reentra para pagar e acredita que logo à noite vai ser melhor que ontem. Também o homem que plastifica documentos detecta felicidade no homem invisível, que passa agora assobiando uma música qualquer, e acredita que pode fazer o mesmo. Lá dentro a mulher ainda repete baixinho que as flores são de plástico: são de plástico, são de plástico, são de plástico.
Já o sol atravessa um homem invisível com severas lâminas de luz. Já o homem colige, num carrinho de mão, embalagens de cartão deixadas a monte nas traseiras dos supermercados. Já dormiu, já sonhou com o corpo duma mulher com quem foi ao cinema na noite anterior, já acordou. Já tem fome.
Um café e uma nata. Com excepção dos clientes, Sandra nunca tocou ninguém na intimidade, e estabelece mentalmente um paralelismo entre a sua vida e o pequeno-almoço. Entre o doce e o acre, entre a infância e o presente. Acabou agora de ler o jornal ao balcão duma pastelaria na entrada dum centro comercial decrépito, e ficou a saber que um grupo de adolescentes espancou e assaltou um professor numa das mais movimentadas avenidas da cidade. Sabe também que o preço da gasolina vai tornar a subir, que um jovem actor duma série qualquer da televisão morreu num acidente de automóvel, que uma florista foi violada dentro da própria loja por alguém que comprava flores para um funeral.
Um café e uma nata. Sandra vive num dos bairros decadentes dos subúrbios da cidade, e hoje percorreu as ruas daquele cemitério com a sensação que a espreitavam por trás das cortinas sujas de cada janela. As burkas da cidade, pensa. Por isso ainda analisa discretamente o seu ténue reflexo no balcão da pastelaria, a ver se está tudo bem. Não sabe, nem nunca soube, o que é estar tudo bem, mas sabe certamente ver se está tudo bem. Ri para dentro engolindo o pensamento e alguma amargura. Um café e uma nata.
Lá fora um homem escreveu nos restos mortais duma caixa de cartão, com o escasso negrume duma esferográfica em fim de vida, que plastifica documentos. Mas não, não plastifica. Está feito estátua e foi a manhã que o plastificou a ele, esculpindo-lhe ausência na face. A quietude dos seus olhos adormeceu no homem que amontoa cartão velho, que ele já não plastifica nada há vários dias e tem de arranjar maneira de viver. Talvez também ele devesse colher cartão para vender, pensa. Para comer, conclui.
Um café e uma nata. Sandra sabe que talvez seja hoje e deseja-o. Ontem foi ao cinema com o homem invisível e ele adormeceu encostado ao seu ombro. Ela petrificou o corpo e o coração para não o acordar, levantando apenas, de vez em quando, o braço do lado oposto para ajustar os óculos ao nariz e conseguir ler as legendas. Acha que foi a noite mais feliz da sua vida de adulta. Não se lembra muito bem do filme, mas lembra-se que o homem cheirava bem, e que no fim da sessão lhe agradeceu o abraço com um obrigado e um beijo na testa. Só na testa, infelizmente. Depois foram a um café que ainda tinha a porta entreaberta àquela hora e ela bebeu um café e comeu uma nata. Sentia-se doce e acre, criança e adulta. Ele bebeu uma água tónica. No fim não fizeram amor, não deram as mãos nem trocaram sorrisos comprometedores. No entanto, o homem invisível levou-a a casa e esperou, lá em baixo, que ela subisse e lhe viesse dizer adeus à janela. Acabou por seguir devagarinho pelo passeio até ser engolido pela noite. Um café, uma nata, um número de telefone num bilhete de cinema e um lençol frio, foi tudo o que restou depois. Sandra sabe que ele a abordou na rua para ter sexo. Só. Que, segundo ele mesmo, perdeu a coragem quando iam a entrar para uma pensão no bairro velho da cidade, e que foi ele quem propôs a ida ao cinema. Que lhe pagava na mesma, insistiu, e foram. A um filme qualquer, numa sala qualquer, num shopping qualquer. No fim Sandra não aceitou o pagamento, trocando o dinheiro pela promessa duma nova visita que ficou marcada já para hoje.
O homem que plastifica documentos tem um rádio rouco. Entra com ele ligado no café e apoia-se no balcão. É só ruído, mas esse ruído parece ser a sua melhor companhia e por isso ninguém se incomoda. O ruído parece ser indissociável do homem, e todos os clientes plastificam uma pose de quem está acima daquela relação. Ele pergunta quanto custa um croissant, apontando-o. Noventa, responde-lhe a voz impaciente da empregada, e insiste que ele indaga o preço todos os dias e nunca consome. Ele torna a sair e a sentar-se na mesa do passeio. Não leva o croissant mas leva o olhar de Sandra que ainda esvoaça pelo resto dos clientes como uma borboleta excitada. Ninguém reage. Apenas uma cliente, que ancorou o olhar nas flores de plástico da parede, repete para dentro que elas são de plástico: são de plástico, são de plástico, são de plástico. Sandra reconhece-a da notícia do jornal: é a florista. Depois volta ao homem. Compra e leva-lhe lá fora um croissant e um leite com chocolate de pacote. Ele agradece quebrando a sua face empedernida com um sorriso dócil. Que talvez ela queira plastificar qualquer coisa, diz-lhe. Talvez, responde Sandra, e tira um cartão antigo com a fotografia a preto e branco duma menina sardenta e sorridente. A menina é ela e ele sabe-o. Só não compreende essa assunção. Que vai mostrar o cartão a uma pessoa especial hoje à noite, confessa. Faz-se silêncio e o silêncio cresce durante a plastificação.
O Sol já subiu um pouco e está menos agressivo. Sandra reentra para pagar e acredita que logo à noite vai ser melhor que ontem. Também o homem que plastifica documentos detecta felicidade no homem invisível, que passa agora assobiando uma música qualquer, e acredita que pode fazer o mesmo. Lá dentro a mulher ainda repete baixinho que as flores são de plástico: são de plástico, são de plástico, são de plástico.
segunda-feira, 1 de junho de 2009
páginas de silêncio
n2 > publicado no Diário de Aveiro no dia 20 de abril de 2006
Página por página, talvez alguém tenha tido um sonho estranho durante a noite, com cadáveres semeando flores em extensões de campos estéreis. Ao acordar, Helena sentiu-lhes o aroma que rareava serpenteando as artérias da cidade, e saiu da cama mais depressa do que é costume. Costuma ficar entre os lençóis com o sossego que foge das ruas e se vem deitar na cama dela. Normalmente nem fazem amor, ficam só a olhar para o débil e silencioso baile dos cortinados de pano branco sujo. É áspera a luz lá fora, vai pensando suavemente, e o silêncio concorda. Agora que se levantou precipitada, vê-se ao espelho ainda nua, e consegue achar-se um bocadinho bonita, apesar do ar cansado e envelhecido. Talvez depois de ir ao psiquiatra passe numa loja e compre um frasco de tinta para o cabelo. Talvez isso a possa fazer feliz, pensa. O silêncio concorda de novo e conforta-a, diz-lhe que o sonho não passou disso mesmo: um sonho. Helena gosta de ir ao psiquiatra por dois motivos: porque pode reinventar os seus sonhos e porque pode nada dizer. Às vezes sabe bem estar com alguém a quem se pode nada dizer.
Página por página, um homem com sotaque do leste folheia em voz alta os últimos dias da sua vida, numa avenida desatenta, mas as suas palavras vão fraquejando entre os olhares flutuantes e ombros embrutecidos que passam. Sente-se um barco à deriva, o homem, e procura um farol algures entre a multidão. Diz que tem trabalhado para um construtor civil qualquer que não lhe paga, que tem filhos à espera numa garagem dum bairro da cidade que sopra, que implora mais alguns dias de vida. Que tem fome. Depois desiste. Deita-se embalado pela sombra duma árvore da avenida. Helena passa por ele sem reparar na sua mão ainda aberta.
As árvores sabem que ele decidiu morrer atirando-se à ria, e que mesmo assim vai tomar um café com açúcar. Sabem que ele apertará os atacadores dos sapatos várias vezes, até sentir que os mesmos estão bem. Nem demasiado apertados nem demasiado largos. Depois penteará ainda o seu reflexo na abundante montra duma pastelaria da cidade. As árvores sabem que ele agirá assim em silêncio, e estenderam um tapete vermelho e outonal que ele vai percorrer devagar, fascinado pela luz que se alonga ao horizonte. Desviar-se-á dum automóvel que não respeitou uma passadeira para peões, antes de esperar, junto à ria, que um autocarro pare e despeje uma dezena de pessoas silenciosas. As árvores sabem que agirá assim para não morrer antes de se matar.
Helena está na sala de espera. Ainda não decidiu de que cor vai pintar o cabelo quando sair dali, talvez porque assim possa continuar a ocupar o espírito com essa preocupação mínima. Não lhe apetecia nada chorar outra vez quando começar a contar os seus dias ao psiquiatra, página por página. Página por página vai lendo, de trás para a frente, uma revista que tirou à sorte dum monte. São só caras, pensa ela, caras empacotadas em fatos e vestidos caros, caras rotuladas por sorrisos torpes, caras sem mais nada. Só caras. Pousa a revista numa das cadeiras vazias ao seu lado. Há várias cadeiras vazias ao seu lado, e lembra-se de como cresceu dividindo um quarto com mais uma cama vazia. A mãe dizia-lhe que era para quando a família aumentasse, o que nunca chegou a acontecer. Nunca teve ninguém ao seu lado, pensa. Por isso viveu sempre em silêncio. Reprime um esgar de choro. Vermelho, vai pintar o cabelo de vermelho. Sorri.
Uma morrinha parece segredar qualquer coisa à cidade. Helena nunca desvenda esse segredo, mas tenta encontrar nele qualquer coisa de bom. Às vezes consegue, numa criança que se estica no balcão duma pastelaria para escolher um bolo, num automóvel que pára para deixar atravessar peões que nem sequer estão numa passadeira, num guarda-chuva que se esforça em vão por abrigar mais do que uma pessoa. Às vezes noutra coisa qualquer. Quando consegue agarra esse momento e guarda-o bem na memória, explica ao psiquiatra, que lhe pergunta se ela se sente mais optimista ou pessimista que na consulta anterior. Pessimismo? Optimismo? Não sabe o que é, diz ela. As coisas são o que são, vai-se vivendo página por página. Depois emudece durante cinco, dez, talvez quinze minutos. Levanta-se, despede-se e sai. Hoje não chorou.
Há páginas que são um erro e se devem rasgar, há outras que se rasgam sozinhas, mesmo quando não queremos. Helena caminha compreendendo o seu silêncio amante, mas sorri-lhe distanciando-se. Que não quer pensar nisso. Um grupo de pessoas agita-se junto a um dos canais da ria que, como sangue, percorre a cidade transportando algum oxigénio. O corpo dum homem oscila ali entre as mãos de dois médicos do INEM, e começa a expulsar alguma água suja pela boca. Já mexe, diz alguém. Que é ucraniano, conclui outro alguém. Que rasgue depressa da sua vida a página do dia de hoje, deseja Helena. Depois sorri. Vai pintar o cabelo de vermelho como o vermelho das folhas que despiram as árvores. As árvores estão nuas mas conseguem achar-se bonitas, conclui. Em silêncio.
Página por página, talvez alguém tenha tido um sonho estranho durante a noite, com cadáveres semeando flores em extensões de campos estéreis. Ao acordar, Helena sentiu-lhes o aroma que rareava serpenteando as artérias da cidade, e saiu da cama mais depressa do que é costume. Costuma ficar entre os lençóis com o sossego que foge das ruas e se vem deitar na cama dela. Normalmente nem fazem amor, ficam só a olhar para o débil e silencioso baile dos cortinados de pano branco sujo. É áspera a luz lá fora, vai pensando suavemente, e o silêncio concorda. Agora que se levantou precipitada, vê-se ao espelho ainda nua, e consegue achar-se um bocadinho bonita, apesar do ar cansado e envelhecido. Talvez depois de ir ao psiquiatra passe numa loja e compre um frasco de tinta para o cabelo. Talvez isso a possa fazer feliz, pensa. O silêncio concorda de novo e conforta-a, diz-lhe que o sonho não passou disso mesmo: um sonho. Helena gosta de ir ao psiquiatra por dois motivos: porque pode reinventar os seus sonhos e porque pode nada dizer. Às vezes sabe bem estar com alguém a quem se pode nada dizer.
Página por página, um homem com sotaque do leste folheia em voz alta os últimos dias da sua vida, numa avenida desatenta, mas as suas palavras vão fraquejando entre os olhares flutuantes e ombros embrutecidos que passam. Sente-se um barco à deriva, o homem, e procura um farol algures entre a multidão. Diz que tem trabalhado para um construtor civil qualquer que não lhe paga, que tem filhos à espera numa garagem dum bairro da cidade que sopra, que implora mais alguns dias de vida. Que tem fome. Depois desiste. Deita-se embalado pela sombra duma árvore da avenida. Helena passa por ele sem reparar na sua mão ainda aberta.
As árvores sabem que ele decidiu morrer atirando-se à ria, e que mesmo assim vai tomar um café com açúcar. Sabem que ele apertará os atacadores dos sapatos várias vezes, até sentir que os mesmos estão bem. Nem demasiado apertados nem demasiado largos. Depois penteará ainda o seu reflexo na abundante montra duma pastelaria da cidade. As árvores sabem que ele agirá assim em silêncio, e estenderam um tapete vermelho e outonal que ele vai percorrer devagar, fascinado pela luz que se alonga ao horizonte. Desviar-se-á dum automóvel que não respeitou uma passadeira para peões, antes de esperar, junto à ria, que um autocarro pare e despeje uma dezena de pessoas silenciosas. As árvores sabem que agirá assim para não morrer antes de se matar.
Helena está na sala de espera. Ainda não decidiu de que cor vai pintar o cabelo quando sair dali, talvez porque assim possa continuar a ocupar o espírito com essa preocupação mínima. Não lhe apetecia nada chorar outra vez quando começar a contar os seus dias ao psiquiatra, página por página. Página por página vai lendo, de trás para a frente, uma revista que tirou à sorte dum monte. São só caras, pensa ela, caras empacotadas em fatos e vestidos caros, caras rotuladas por sorrisos torpes, caras sem mais nada. Só caras. Pousa a revista numa das cadeiras vazias ao seu lado. Há várias cadeiras vazias ao seu lado, e lembra-se de como cresceu dividindo um quarto com mais uma cama vazia. A mãe dizia-lhe que era para quando a família aumentasse, o que nunca chegou a acontecer. Nunca teve ninguém ao seu lado, pensa. Por isso viveu sempre em silêncio. Reprime um esgar de choro. Vermelho, vai pintar o cabelo de vermelho. Sorri.
Uma morrinha parece segredar qualquer coisa à cidade. Helena nunca desvenda esse segredo, mas tenta encontrar nele qualquer coisa de bom. Às vezes consegue, numa criança que se estica no balcão duma pastelaria para escolher um bolo, num automóvel que pára para deixar atravessar peões que nem sequer estão numa passadeira, num guarda-chuva que se esforça em vão por abrigar mais do que uma pessoa. Às vezes noutra coisa qualquer. Quando consegue agarra esse momento e guarda-o bem na memória, explica ao psiquiatra, que lhe pergunta se ela se sente mais optimista ou pessimista que na consulta anterior. Pessimismo? Optimismo? Não sabe o que é, diz ela. As coisas são o que são, vai-se vivendo página por página. Depois emudece durante cinco, dez, talvez quinze minutos. Levanta-se, despede-se e sai. Hoje não chorou.
Há páginas que são um erro e se devem rasgar, há outras que se rasgam sozinhas, mesmo quando não queremos. Helena caminha compreendendo o seu silêncio amante, mas sorri-lhe distanciando-se. Que não quer pensar nisso. Um grupo de pessoas agita-se junto a um dos canais da ria que, como sangue, percorre a cidade transportando algum oxigénio. O corpo dum homem oscila ali entre as mãos de dois médicos do INEM, e começa a expulsar alguma água suja pela boca. Já mexe, diz alguém. Que é ucraniano, conclui outro alguém. Que rasgue depressa da sua vida a página do dia de hoje, deseja Helena. Depois sorri. Vai pintar o cabelo de vermelho como o vermelho das folhas que despiram as árvores. As árvores estão nuas mas conseguem achar-se bonitas, conclui. Em silêncio.
quinta-feira, 28 de maio de 2009
por trás dos panos
n1 > publicado no Diário de Aveiro no dia 13 de abril de 2006
Sandra acordou hoje com a sensação que tem trocado a vida por algo infinitamente menor. Acha que foi ontem que reparou nisso, ao chegar a casa, quando a vizinha do lado a tentou esmurrar com um misto de pena e de raiva. Que ela é que anda bem de vida, que não faz contas ao dinheiro nem aos casamentos que desmancha, que é uma galdéria e uma desavergonhada. Sandra colocou a chave na fechadura apenas à terceira tentativa, mesmo mantendo uma calma aparente, e depois entrou fechando a porta sem sequer responder às injúrias. A voz da vizinha, que não falava para ela mas sim para todas as outras vizinhas daquela rua de casas térreas, diminuiu de intensidade mas não se apagou. Ficou a roçar as madeiras velhas da porta como um cão sedento de um lar, e Sandra não saiu mais durante todo o dia. Ficou a ver um concurso qualquer na televisão até adormecer no sofá vencida pelo cansaço, e agora, já o fim de tarde respira sôfrego, acordou com a sensação que tem trocado a vida por algo infinitamente menor.
A cidade que sopra pinta-se como uma velha meretriz, pensa um homem invisível, mas não disfarça as rugas que penteiam o seu corpo de mulher, conclui sorrindo para dentro. Só lhe sobra uma réstia de orgulho, à urbe, e o homem caminha só desafiando-a por entre um nevoeiro que sussurra a um fim de tarde estéril. Os seus olhos investigam todos os bares da baixa, que vão abrindo lentamente com uma luz áspera até pousarem numa nova sentença: talvez a cidade seja assim, tímida, porque passa os dias a ver-se ao espelho. Depois acende um cigarro absorto e entra num botequim que parece não ter nome. Tem apenas idade. Muita. Senta-se ao balcão depois de pendurar a gabardina num cabide que ameaça cair da parede, a peça de roupa encobre a única abertura por onde as cortinas vermelhas do bar deixam entrar uma réstia de luz. Não está ninguém a atender. Espera.
Os vidros da janela da casa de Sandra empalidecem as cores da rua mais do que nos outros dias. É a hora de forçar um sorriso em frente ao espelho e plastificá-lo na face. É um sorriso falso mas forte, uma imensa represa de lágrimas. Uma mulher não chora, repete três vezes. Alisa as calças apertadas na zona das ancas, ajeita os seios aprisionados num sutiã vermelho enquadrando-os com o decote. Sai de casa. O cão de ontem adormeceu mas algumas mulheres de xaile espreitam-na por trás das cortinas de renda. As cortinas de renda são as burkas desta cidade, pensa Sandra, e por um momento sorri sem esforço. Apressa o passo. Uma mulher não chora, uma mulher não chora, uma mulher não chora.
Debaixo duma arcada alguns homens engraxam sapatos a outros homens, e a ausência passeia-se entre os transeuntes como um cão rejeitado pela matilha. Sandra só hoje percebe que eles existem mesmo, que não são uma invenção dela quando passa ali de madrugada ao regressar a casa. É fim de tarde e eles estão ali na mesma. Um deles tem a tenda decorada com a bandeira amarela e negra duma equipa de futebol qualquer, e discute arduamente qualquer coisa com o cliente que se distrai com o corpo de Sandra. Parece que ele rompeu a gabardina no prego que serve de cabide. Ela sente o olhar dele a esvoaçar à volta do seu corpo como uma borboleta ferida e apressa o passo. Os saltos altos pianam sobre as pedras do passeio tocando ritmadas notas musicais. Sandra nunca foi a um jogo de futebol, pensa, e depois continua pululando a mente por todos os sítios na cidade que nunca visitou. Talvez também ela seja um animal rejeitado. Talvez não. Era tão bom que um jogo de futebol chegasse para a fazer feliz. Talvez não.
Uma mulher de trás do balcão sacode o braço do homem invisível três vezes até ele acordar. O cigarro ardeu sem ser fumado, e a sua cinza forma uma espécie de galho torto que cai sobre as calças. Ela pergunta-lhe o que é que ele quer, que se ele quer dormir não é ali o sítio indicado. Então um uísque novo, responde ele. Depois fixa os olhos num televisor que também acabou de acordar, e revela as córneas avermelhadas em finos traços de sangue. Sandra, que acaba de entrar no bar, acha que são olhos de álcool, aqueles, e senta-se também ao balcão mantendo estrategicamente dois bancos de distância do homem. A mulher que sacode braços surge de trás dum cortinado vermelho e pergunta-lhe o que é que ela quer, que se é para andar ao engate não é ali o sítio indicado. Então um uísque novo, responde Sandra. Depois fixa os olhos no televisor que transmite um jogo de futebol. Um equipa veste de amarelo e negro, a outra não. Talvez seja a mesma do engraxador de sapatos, conclui ela, e dá um gole no uísque onde aproveita para afogar o pensamento por uns instantes. Lá fora um homem vê o jogo numa montra duma loja de electrodomésticos, e os seus gritos ocupam esporádica e violentamente a rua.
A cidade que sopra descansa agora, numa espécie de apneia duma caixa torácica enfraquecida, e espera pacientemente a noite que parece não querer cair. Há, no entanto, um golo qualquer que interrompe esta acalmia. Outro uísque, pede o homem invisível, ou melhor, dois, que um é para a senhora. Sandra endireita-se no banco e olha o homem que acaba de impedir que o seu pensamento se afogue. Tem uma boca, tem um nariz, tem dois olhos, como todos os outros que começam por lhe pagar um copo de uísque, ou uma cerveja, ou uma cola, ou outra coisa qualquer. É invisível, portanto, mas fala e pergunta-lhe se ela tem que fazer depois do jogo. Que depende, diz ela, que é oportuno falar de dinheiro. A mulher que sacode braços esconde-se atrás da burka vermelha do bar, ele desloca-se estrategicamente dois bancos e fica ao lado dela. Põe-lhe uma mão numa anca. O cabide cai e a gabardina estende-se no chão deixando perceber que, lá fora, o homem que vê o jogo num televisor da montra ainda festeja o golo e é o engraxador. Está sentado na sua caixa de trabalho. Faz muito barulho e o homem invisível ri-se. Sandra também. Talvez não. A gabardina está rota. Daqui a pouco ambos entrarão na casa dela, ladeando os olhares sedentos por trás dos cortinados, das burkas, dos panos, do que lhe quiserem chamar. Mais um homem invisível numa noite infinitamente pequena de Sandra. Por trás dos panos.
Sandra acordou hoje com a sensação que tem trocado a vida por algo infinitamente menor. Acha que foi ontem que reparou nisso, ao chegar a casa, quando a vizinha do lado a tentou esmurrar com um misto de pena e de raiva. Que ela é que anda bem de vida, que não faz contas ao dinheiro nem aos casamentos que desmancha, que é uma galdéria e uma desavergonhada. Sandra colocou a chave na fechadura apenas à terceira tentativa, mesmo mantendo uma calma aparente, e depois entrou fechando a porta sem sequer responder às injúrias. A voz da vizinha, que não falava para ela mas sim para todas as outras vizinhas daquela rua de casas térreas, diminuiu de intensidade mas não se apagou. Ficou a roçar as madeiras velhas da porta como um cão sedento de um lar, e Sandra não saiu mais durante todo o dia. Ficou a ver um concurso qualquer na televisão até adormecer no sofá vencida pelo cansaço, e agora, já o fim de tarde respira sôfrego, acordou com a sensação que tem trocado a vida por algo infinitamente menor.
A cidade que sopra pinta-se como uma velha meretriz, pensa um homem invisível, mas não disfarça as rugas que penteiam o seu corpo de mulher, conclui sorrindo para dentro. Só lhe sobra uma réstia de orgulho, à urbe, e o homem caminha só desafiando-a por entre um nevoeiro que sussurra a um fim de tarde estéril. Os seus olhos investigam todos os bares da baixa, que vão abrindo lentamente com uma luz áspera até pousarem numa nova sentença: talvez a cidade seja assim, tímida, porque passa os dias a ver-se ao espelho. Depois acende um cigarro absorto e entra num botequim que parece não ter nome. Tem apenas idade. Muita. Senta-se ao balcão depois de pendurar a gabardina num cabide que ameaça cair da parede, a peça de roupa encobre a única abertura por onde as cortinas vermelhas do bar deixam entrar uma réstia de luz. Não está ninguém a atender. Espera.
Os vidros da janela da casa de Sandra empalidecem as cores da rua mais do que nos outros dias. É a hora de forçar um sorriso em frente ao espelho e plastificá-lo na face. É um sorriso falso mas forte, uma imensa represa de lágrimas. Uma mulher não chora, repete três vezes. Alisa as calças apertadas na zona das ancas, ajeita os seios aprisionados num sutiã vermelho enquadrando-os com o decote. Sai de casa. O cão de ontem adormeceu mas algumas mulheres de xaile espreitam-na por trás das cortinas de renda. As cortinas de renda são as burkas desta cidade, pensa Sandra, e por um momento sorri sem esforço. Apressa o passo. Uma mulher não chora, uma mulher não chora, uma mulher não chora.
Debaixo duma arcada alguns homens engraxam sapatos a outros homens, e a ausência passeia-se entre os transeuntes como um cão rejeitado pela matilha. Sandra só hoje percebe que eles existem mesmo, que não são uma invenção dela quando passa ali de madrugada ao regressar a casa. É fim de tarde e eles estão ali na mesma. Um deles tem a tenda decorada com a bandeira amarela e negra duma equipa de futebol qualquer, e discute arduamente qualquer coisa com o cliente que se distrai com o corpo de Sandra. Parece que ele rompeu a gabardina no prego que serve de cabide. Ela sente o olhar dele a esvoaçar à volta do seu corpo como uma borboleta ferida e apressa o passo. Os saltos altos pianam sobre as pedras do passeio tocando ritmadas notas musicais. Sandra nunca foi a um jogo de futebol, pensa, e depois continua pululando a mente por todos os sítios na cidade que nunca visitou. Talvez também ela seja um animal rejeitado. Talvez não. Era tão bom que um jogo de futebol chegasse para a fazer feliz. Talvez não.
Uma mulher de trás do balcão sacode o braço do homem invisível três vezes até ele acordar. O cigarro ardeu sem ser fumado, e a sua cinza forma uma espécie de galho torto que cai sobre as calças. Ela pergunta-lhe o que é que ele quer, que se ele quer dormir não é ali o sítio indicado. Então um uísque novo, responde ele. Depois fixa os olhos num televisor que também acabou de acordar, e revela as córneas avermelhadas em finos traços de sangue. Sandra, que acaba de entrar no bar, acha que são olhos de álcool, aqueles, e senta-se também ao balcão mantendo estrategicamente dois bancos de distância do homem. A mulher que sacode braços surge de trás dum cortinado vermelho e pergunta-lhe o que é que ela quer, que se é para andar ao engate não é ali o sítio indicado. Então um uísque novo, responde Sandra. Depois fixa os olhos no televisor que transmite um jogo de futebol. Um equipa veste de amarelo e negro, a outra não. Talvez seja a mesma do engraxador de sapatos, conclui ela, e dá um gole no uísque onde aproveita para afogar o pensamento por uns instantes. Lá fora um homem vê o jogo numa montra duma loja de electrodomésticos, e os seus gritos ocupam esporádica e violentamente a rua.
A cidade que sopra descansa agora, numa espécie de apneia duma caixa torácica enfraquecida, e espera pacientemente a noite que parece não querer cair. Há, no entanto, um golo qualquer que interrompe esta acalmia. Outro uísque, pede o homem invisível, ou melhor, dois, que um é para a senhora. Sandra endireita-se no banco e olha o homem que acaba de impedir que o seu pensamento se afogue. Tem uma boca, tem um nariz, tem dois olhos, como todos os outros que começam por lhe pagar um copo de uísque, ou uma cerveja, ou uma cola, ou outra coisa qualquer. É invisível, portanto, mas fala e pergunta-lhe se ela tem que fazer depois do jogo. Que depende, diz ela, que é oportuno falar de dinheiro. A mulher que sacode braços esconde-se atrás da burka vermelha do bar, ele desloca-se estrategicamente dois bancos e fica ao lado dela. Põe-lhe uma mão numa anca. O cabide cai e a gabardina estende-se no chão deixando perceber que, lá fora, o homem que vê o jogo num televisor da montra ainda festeja o golo e é o engraxador. Está sentado na sua caixa de trabalho. Faz muito barulho e o homem invisível ri-se. Sandra também. Talvez não. A gabardina está rota. Daqui a pouco ambos entrarão na casa dela, ladeando os olhares sedentos por trás dos cortinados, das burkas, dos panos, do que lhe quiserem chamar. Mais um homem invisível numa noite infinitamente pequena de Sandra. Por trás dos panos.
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